John Reppy
Especializado nas
propriedades quânticas dos superfluidos, John Reppy está empenhado em
demonstrar a existência dos supersólidos, um novo estado da matéria em que os
átomos se comportam como se fossem, simultaneamente, sólidos e fluidos.
John Reppy é
professor de física de baixas temperaturas, inventor e alpinista. Dedicou 50
dos seus 87 anos de idade ao estudo dos superfluidos, ou seja, ao estranho
comportamento da matéria (em concreto, dos isótopos do hélio) a temperaturas
próximas do zero absoluto. Contudo, há alguns anos, decidiu fechar-se no seu
laboratório da Universidade de Cornell (Nova Iorque) e não se reformar
defintivamente até resolver o mistério que envolve um novo estado da matéria,
conhecido como “supersólido”.
O que é a criogenia
ou física do ultrafrio?
A criogenia começa
onde acaba a escala de temperatura comum, isto é, abaixo dos –180 ºC ou 93,15
Kelvin, e chega até ao zero absoluto. Nesse limite do termómetro, desaparece a
energia térmica, assim como toda a resistência elétrica, e nasce a
supercondutividade. Diversos cientistas conseguiram obter temperaturas muito
próximas do zero absoluto e conquistaram vários prémios Nobel graças a isso.
Todavia, o que nos interessa é que a matéria, a tais escalas e devido aos
efeitos quânticos da supercondutividade e à superfluidez, se comporta de formas
muito curiosas.
O que tem de
estranho um superfluido?
Por exemplo, pode
passar através de uma superfície sem fricção, atravessar as paredes dos
recipientes, fluindo pelos seus poros, e subir pela parede do recipiente,
alcançar o bordo e descer pelos lados exteriores. Parece magia!
Especializou-se no
estudo do hélio. Por que escolheu esse elemento?
Porque o hélio
líquido permite alcançar as temperaturas mais baixas. Isso oferece-nos a possibilidade
de estudar muitos fenómenos diferentes. É o gás ideal para observar a física do
frio e a superfluidez. Há dois isótopos do hélio que são estáveis e, portanto,
apropriados para as experiências: o hélio-3 e o hélio-4, ambos leves e não
radioativos. O He3 não é comum na Terra, embora seja abundante na superfície
lunar. Por isso, trabalhamos com He4, que existe em abundância. No mercado de
produtos químicos, é comercializado a cerca de 4 Kelvin. Porém, quando desce
até uma temperatura inferior a 2 K, muda de estado. Deixa de ser um líquido
vulgar em ebulição para se transformar num fluido inativo com propriedades de
superfluido, como a extrema condutividade térmica e aquelas qualidades mágicas
que referi antes, e que são o oposto do que aconteceria num líquido normal.
Posso dizer que já conseguimos compreender quase por completo o He4 em estado
de superfluido. Por outro lado, também estudámos o hélio sólido, que não deve
ser confundido com supersólido. Se alguém quiser obter hélio sólido, não basta
arrefecê-lo: terá de o submeter a uma pressão da ordem das 25 atmosferas. Nesse
estado, também se produzem propriedades invulgares.
E os supersólidos?
Trata-se de um
fenómeno novo e emocionante, se é que existe na realidade [risos]. Há anos que
perseguimos essa ideia. Na década de 1970, foi vaticinada a possibilidade de
existir condensação de Bose-Einstein no hélio sólido. Intuiu-se que isso faria
o sólido adquirir propriedades de superfluido e de sólido cristalino, embora os
especialistas não soubessem com exatidão o que isso significaria. Em 2004, um
antigo aluno meu, Moses Chan, atualmente na Universidade do Estado da
Pensilvânia, obteve o primeiro indício de que talvez exista um estado da
matéria a que se poderia chamar “supersólido”, isto é, que mantém a estrutura
de grelha mas sem ser rígido. O problema, neste caso, é que John Beamish, da
Universidade de Alberta (Canadá), descobriu que o hélio sólido normal possui
propriedades elásticas. O elemento deforma-se e sofre uma alteração drástica na
mesma zona de temperatura em que se encontrou o supersólido. A dificuldade
reside no facto de essas propriedades elásticas poderem ser confundidas, nas
experiências, com as características que definiriam um supersólido. Constitui o
grande obstáculo que enfrentamos atualmente.
Como determinam as
propriedades do hélio a baixas temperaturas?
Usamos um aparelho
chamado “oscilador de torção”: um tubo oco complexo que enchemos com hélio e
arrefecemos a quase zero absoluto. Eu próprio concebo e fabrico esses
osciladores, pois gosto de inventar coisas. Por vezes, penso que são como
pequenas esculturas de arte moderna, e proporcionam-me muitas alegrias para
além da intelectual. Contudo, a arte termina onde começa a ciência.
Reproduziu a
experiência de Moses Chan?
Sim, conseguimos mostrar
que, em determinadas circunstâncias, o que se observou na experiência de Chan é
um elemento químico dominado pelas propriedades elásticas de um sólido. Foram
concebidos outros aparelhos que deveriam ser insensíveis a esse efeito do hélio
sólido-elástico, mas não é fácil medir as oscilações. Por exemplo, criámos um
oscilador que gira não apenas numa frequência, como é habitual, mas em duas.
Por haver duas frequências de oscilação, deveria ser muito mais fácil
distinguir entre o efeito de um sólido elástico e o de um supersólido, se for
efetivamente o caso. Contudo, ainda não temos uma ideia clara do funcionamento
do fenómeno e, infelizmente, tanto aqui, na Universidade de Cornell, como no
caso de outros investigadores, obtemos resultados diferentes. Assim, temos um
problema de reprodutibilidade, a capacidade de uma experiência poder ser
replicada.
Acredita na
existência dos supersólidos?
Se está a pedir a
minha opinião, creio que sim, que existem. Sou positivo e otimista. Contudo,
temos de ter cuidado, pois o ser humano tende a deixar que uma ideia lhe entre
na cabeça e, depois, interpreta tudo em função disso, de tal forma que é
difícil mudar de opinião. Talvez estejamos numa etapa em que deveríamos mudar
de pensamento. A ciência é assim. No entanto, se a existência dos supersólidos
for demonstrada, mereceria a atribuição de um Nobel.
Já se tinha
afastado quando isto apareceu...
Sim, estava a
começar a dedicar-me às minhas paixões e às minhas netas quando surgiu Chan com
o seu trabalho. A técnica do oscilador de torção foi desenvolvida aqui, pelo
meu grupo, e como ninguém estava, no início, a reproduzir a experiência dele,
pensei que alguém devia fazê-lo. Propus o plano a uma assistente de
pós-graduação, e ela aceitou.
Uma das suas
paixões é o alpinismo. Há mesmo um percurso de descida no New Hampshire a que
deram o nome de Reppy’s Crack. Ainda escala montanhas?
Sim, mas a verdade
é que, desde que me reformei, passo demasiado tempo no laboratório [risos].
Quando este problema dos supersólidos estiver resolvido, fecharei a porta e
poderei começar novamente a fazer montanhismo a sério.