Um sonho
tornado realidade
E se pudéssemos
produzir todo o sangue de que necessitamos? Hugo Macedo, investigador do Imperial
College London desde 2006, completou o seu doutoramento no desenvolvimento
de um birreactor para a produção de glóbulos vermelhos em larga escala a partir
de células do cordão umbilical. Nestas páginas, conta-nos como deveremos ter,
em breve, verdadeiras “fábricas de sangue”.
Estima-se que
um terço da população mundial necessitará de uma transfusão sanguínea pelo
menos uma vez durante a sua vida. No entanto, apenas uma em cada 20 pessoas
doará sangue, e este apenas poderá ser conservado por um período máximo de 42
dias. Esta situação coloca uma elevada pressão no sistema mundial de saúde, que
tem de encontrar dadores suficientes para as cerca de 90 milhões de unidades
que são usadas todos os anos no planeta, um número com tendência para aumentar
acentuadamente.
A primeira
transfusão sanguínea conhecida num ser humano foi realizada em 1667, em Paris,
pelo médico Jean-Baptiste Denis, que trabalhava para o rei Luís XIV de França,
e pelo cirurgião Paul Emmerez. Os dois clínicos trataram assim uma jovem
paciente que sofria de sintomas anémicos, a qual melhorou bastante depois de
ter recebido sangue de cordeiro. Em 1825, James Blundell, um obstetra de
Londres, executou a primeira transfusão sanguínea homóloga, numa senhora que
sofria de hemorragia pós-parto e cujo marido doou o sangue.
Estes pioneiros
das transfusões debatiam-se com alguns resultados inesperados, os quais, quase
sempre, culminavam na morte do paciente. Sabemos, hoje, que isso se devia à
incompatibilidade de tipos de sangue, mas durante muito tempo este conceito foi
desconhecido da comunidade científica. Por essa razão, as transfusões
sanguíneas só passaram a ser prática corrente no século XX, depois da
identificação dos diversos tipos sanguíneos em 1900 por Karl Landsteiner, um
proeminente médico de Viena. Para estabelecer um banco de sangue que pudesse
salvar vidas, a Cruz Vermelha britânica criou em 1921 o primeiro serviço
voluntário de dadores; os seus membros foram os primeiros a dar o exemplo.
Circulação
vital
Os glóbulos
vermelhos, ou hemácias, compõem 95 por cento da população celular do sangue, um
tecido vital para o nosso corpo: transportam oxigénio para as células e
removem o dióxido de carbono que estas produzem como parte do seu metabolismo.
As hemácias são também as células mais usadas em terapia clínica, com 325 mil
unidades consumidas anualmente em Portugal, o que representa um custo
aproximado para o SNS de 55 milhões de euros.
Na realidade,
38% do sangue recolhido pelo Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS, na
sigla inglesa) é usado em medicina geral, principalmente em cirurgias, enquanto
um único transplante de medula óssea (por exemplo, em pacientes com leucemia)
pode exigir plaquetas de mais de cem dadores e glóbulos vermelhos de outros
vinte.
Apesar de todas
estas necessidades, a única solução para obter tanto sangue continua a ser a
doação por indivíduos saudáveis. As preocupações relacionadas com a segurança,
a disponibilidade imediata e as reservas disponíveis para evitar que se adiem
cirurgias ou tratamentos clínicos vitais estão constantemente nas notícias. A
transfusão sanguínea salva vidas e melhora a qualidade de vida; no entanto,
milhões de pacientes em todo o mundo não têm acesso a um banco de sangue.
De acordo com o
programa da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre Segurança em Transfusões
Sanguíneas, houve em 2007 85,4 milhões de doações de sangue nos 162 países que
participaram no estudo, representando um total de 5,9 mil milhões de pessoas,
ou 92% da população mundial. Metade de todo o sangue recolhido provém dos
países industrializados, que no entanto apenas consomem 16% das reservas. Ainda
assim, a quebra nas reservas não é um problema apenas nos países em
desenvolvimento: em 2002, 7% das cirurgias marcadas nos Estados Unidos foram
adiadas devido à falta de sangue disponível.
Por isso, é
literalmente vital encontrar uma alternativa às doações sanguíneas, para
fornecer uma fonte segura e contínua de componentes sanguíneos em geral, e de
glóbulos vermelhos em particular, o que traria uma considerável melhoria na
qualidade de vida de toda a população humana.
Engenharia de
tecidos
A ideia de produzir
sangue artificialmente não é nova. O tempo limitado durante o qual se pode
conservar o sangue doado (no máximo, 42 dias) impulsionou, no final da década
de 1940, investigações sobre a síntese de moléculas que pudessem imitar a
função de transporte de oxigénio pela hemoglobina nos glóbulos vermelhos, como
os perfluorocarbonetos. No entanto, descobriu-se que elas eram menos eficientes
do que o sangue e, em alguns casos, aumentavam a taxa de mortalidade. Por isso,
apesar de os cientistas andarem há mais de 70 anos a procurar moléculas que
possam substituir, ainda que apenas momentaneamente, esta função vital dos
glóbulos vermelhos, ainda nenhuma foi aprovada para administração em seres
humanos.
Mais
recentemente, o potencial da engenharia de tecidos para o desenvolvimento de
substitutos biológicos para restaurar, manter ou melhorar algumas funções tem
tido demonstrações eloquentes, como, por exemplo, o primeiro transplante de uma
traqueia humana produzida em laboratório, realizado em 2008.
Um substituto
biológico para as tradicionais doações sanguíneas acabaria com o problema das
reservas insuficientes. Tendo em conta os últimos desenvolvimentos em
investigação e bio processamento de células estaminais, a produção in vitro
(fora do corpo humano) e em larga escala de glóbulos vermelhos parece uma
abordagem exequível.
Os seus
princípios fundamentais centram-se na exploração das características singulares
das células estaminais. Estas podem ser obtidas de várias fontes (fases
embrionária ou adulta do desenvolvimento) e são caracterizadas por possuírem
capacidade de auto-renovação (podem originar outras células) e o potencial de
se diferenciarem em diferentes células com funções específicas no corpo humano.
Cada classe de células estaminais apresenta os seus desafios e benefícios para
o desenvolvimento de terapias clínicas.
As células
estaminais embrionárias são capazes de se multiplicar indefinidamente e são
pluripotentes. Tem havido esforços no sentido de gerar linhas celulares à
medida de cada paciente, que possam ultrapassar as barreiras de rejeição que as
atuais doações de sangue e de órgãos, regra geral, acarretam. No entanto, estas
células também podem formar teratomas. São difíceis de controlar em relação ao
tipo de células em que se diferenciam e levantam considerações éticas, devido à
necessidade de destruir embriões humanos para as obter.
Estes problemas
levaram ao desenvolvimento de um novo tipo de células: as células estaminais de
pluripotência induzida (iPSC, na sigla inglesa), obtidas por reprogramação de
células funcionais, cuja descoberta levou à entrega do Prémio Nobel em
Fisiologia ou Medicina de 2012 aos investigadores Sir John Gurdon, da
Universidade de Oxford, e Shinya Yamanaka, da Universidade de Quioto.
As células
estaminais adultas não levantam objecções éticas (podem ser obtidas através de
várias fontes no dador ou no paciente, como o cordão umbilical, a medula óssea
ou a corrente sanguínea), mas também apresentam limitações: têm uma qualidade
muito variável e a sua capacidade de diferenciação em células funcionais
encontra-se, normalmente, restringida a um determinado tipo de células (são
também designadas por “multipotentes”, devido a esta limitação).
Nos humanos, os
glóbulos vermelhos são produzidos a partir da diferenciação das células estaminais
hematopoiéticas (HSC, na sigla inglesa), especializadas na produção de células
sanguíneas, que populam a medula óssea, um corpo esponjoso encontrado no
interior dos ossos do corpo, como a bacia. Este processo, a hematopoiese, é
estreitamente controlado pelo nicho hematopoiético, que consiste em células,
proteínas da matriz extracelular e fatores de crescimento (FC). Em média, a
medula de um humano de 70 quilos produz cerca de 200 mil milhões de glóbulos
vermelhos por dia, embora sob stress (como na privação de oxigénio), este valor
possa ser aumentado em dez vezes.
Primeiros sucessos, mas caros
A maioria das
experiências actualmente em desenvolvimento no sentido de produzir glóbulos
vermelhos in vitro tem usado sistemas de cultura bidimensionais, recorrendo ao
uso de elevadas concentrações de FC em frascos de plástico. Recentemente, o
grupo de Luc Douay, em França, usou esta tecnologia para a produção in vitro
de glóbulos vermelhos que foram depois, pela primeira vez na história,
transferidos com sucesso para um paciente humano, embora ainda com certas
limitações.
Os sistemas
tradicionais de cultura celular bidimensionais possuem, no entanto, grandes
limitações, que têm de ser ultrapassadas antes que o sangue “bio artificial”
possa ser comercializado e se torne uma realidade clínica. Especificamente, o
uso de culturas em frascos necessitaria de uma área de superfície equivalente a
dois courts de ténis (cerca de 166 metros quadrados) para produzir
apenas cinco unidades de sangue. Por outro lado, o uso de elevadas
concentrações de FC influencia de forma não fisiológica o processo de
hematopoiese in vitro, e aumenta de forma exponencial os custos de produção (um
miligrama de eritropoietina, um tipo de FC correntemente usado, custa mais de
35 mil euros). Finalmente, a falta do ambiente tridimensional que se verifica
naturalmente na medula óssea pode afectar a maturação dos glóbulos vermelhos,
resultando em células deficientes.
O
desenvolvimento de uma “fábrica de sangue” sustentável e de custos acessíveis
requererá avanços não apenas na biologia de células estaminais, mas também em
novas e melhoradas tecnologias de bio processamento. Através da “engenharia
inversa” da medula óssea, o grupo de investigadores do Imperial College
London a que pertenço desenvolveu um sistema de cultura celular “bio
inspirado” na estrutura e na função do tecido de produção sanguíneo no ser
humano. Trata-se do primeiro birreactor de fibras ocas verdadeiramente
tridimensional, desenhado através da integração de um polímero poroso
tridimensional (onde as células se poderão desenvolver como na medula) com
membranas de fibras ocas poliméricas e cerâmicas, que irrigarão o espaço de
crescimento com nutrientes essenciais, como fazem os vasos sanguíneos na
medula.
Produção a
baixo custo
Este design,
que foi patenteado em Novembro de 2010, permite resolver três questões
fundamentais nesta área. Por um lado, assegura uma transferência de massa
eficiente para a entrega e remoção de nutrientes e metabólicos celulares, respectivamente.
Depois, garante a recolha em processo contínuo de células funcionais, à medida
que estas se diferenciam no polímero poroso tridimensional, a partir das células
estaminais, ao atravessarem as paredes das fibras ocas. Finalmente, reduz em
cerca de 90% os custos associados ao uso de fatores de crescimento nas
tecnologias atuais, através da implementação de uma fonte de reciclagem destas
moléculas.
Na sequência de
experiências iniciais bem sucedidas, realizadas em colaboração com o NHS e o
Serviço Nacional de Sangue britânico, que resultaram na produção de glóbulos
vermelhos funcionais, o nosso grupo pretende agora optimizar o design e os
processos desta “fábrica de sangue”, para assegurar a produção contínua de
glóbulos vermelhos em quantidades clinicamente aceitáveis e de qualidade,
seguindo as normas de higiene e segurança necessárias para passar à fase
seguinte, a dos ensaios pré-clínicos.
As tendências
atuais na investigação sugerem que, nos próximos cinco anos, estes estudos
poderão assegurar a segurança e a eficácia no uso de sangue bio artificial em
seres humanos. Em última instância, a segurança, a eficácia e o custo de
produção irão determinar o sucesso desta e de outras terapias semelhantes, com
o intuito de melhorar a qualidade de vida humana. Costuma dizer-se, nas
campanhas de angariação de dadores, que o sangue não se fabrica. Dentro de uns
anos, já não deverá ser assim.